Quando
nos perguntam “quem é você?”, deveríamos entender uma pergunta dupla: “O que é você?” e “Como está você?”. Sim,
pois esta é a verdadeira questão: ser ou estar; sou ou estou? Este texto
pretende refletir sobre esta questão central em nossa vida: O que sou? Como
estou? E levará em conta a doutrina cristã, particularmente a doutrina
católica: a crença em Deus e em seu Filho Jesus Cristo, além da ação real do
Espírito Santo. E, ao final, será feita uma reflexão sobre a oração católica
Ave Maria.
ESQUEMA INICIAL
O esquema abaixo define e compara a
questão em foco: sou ou estou?
SER – a) Situação permanente:
O que é você? Para uma resposta
adequada, deve-se atender a este requisito: estar associada a uma situação
permanente. Portanto, uma resposta múltipla poderia ser: sou um ser humano, sou
um filho de Deus, sou um ser corpo-mente-espírito (ou corpo-psiquismo-alma).
ESTAR – a) Situação transitória:
Como está você? Para uma resposta
adequada, deve-se atender a este requisito: estar associada a uma situação
transitória. Portanto, uma resposta múltipla poderia ser: estou como um
professor (ou qualquer outra profissão ou ocupação), estou saudável, estou
estressado, estou em estado de pecado.
SER – b) Transformação ontológica:
Acontece quando uma pessoa muda o
caráter do seu “ser”. Por exemplo, quando uma pessoa, criatura de Deus,
inicialmente, é batizada e torna-se – por efeito de uma verdadeira
transformação ontológica! – em um filho de Deus. Esta pessoa pode responder à
pergunta “O que é você?” por meio da resposta válida: eu sou um filho de Deus!
Do mesmo modo, quando uma pessoa
batizada recebe validamente o sacramento do matrimônio cristão católico, passa
a um novo “ser”: agora é marido da sua esposa; uma marca indelével, que o torna
marido dela (e ela, esposa dele) por toda a sua vida terrena. Agora ele pode responder à pergunta “O que é
você?” com a resposta: sou marido de fulana. Ele não é mais somente “um filho
de Deus”, mas um esposo.
Outro exemplo ocorre se um cristão
batizado, pela recepção válida do sacramento da Ordem, torna-se – por efeito de
uma verdadeira transformação ontológica! – um sacerdote (padre ou presbítero).
Ele poderá, igualmente, responder à pergunta “O que é você?” pela resposta: eu
sou um padre; porque o serei por toda a vida terrena, mesmo que venha a não
mais exercer o sacerdócio, por alguma impossibilidade física ou legal, ainda
serei um sacerdote, pela marca indelével recebida no sacramento da Ordem.
Teoricamente, se um ser humano
perder o seu corpo, pela morte, este sofre uma transformação ontológica: agora
este ser humano é somente uma alma ou um ser humano puramente espiritual. Ele
poderia responder àquela pergunta “O que é você?” pela resposta: eu sou uma
alma (ou um ser humano espiritual) – que poderá estar no Céu, no Purgatório ou
no inferno...
ESTAR – b) Mudança existencial:
Acontece quando uma pessoa muda seu
estado atual. Por exemplo, deixou de “estar” professor e passou a atuar como
advogado. Agora sua resposta à pergunta “Como você está?” será: estou advogado.
Isto é, essa pessoa mudou seu estado existencial (sua profissão).
Um doente que se recupera, passa por
uma mudança existencial. Ele pode, agora, responder à pergunta “Como está
você?” dizendo que está saudável. Isto se aplica para qualquer estado existencial
ou circunstancial de uma pessoa.
Um interessante exemplo na vida
cristã é a situação de pecado. Se um cristão está em “estado de pecado” e
procura o confessionário, para uma confissão válida, ao receber a absolvição
ele passa a estar em “estado de graça”. À pergunta “Como você está?”, ele
poderá responder, após ter passado por essa mudança existencial, que está em
“estado de graça”, ou que não está pecador, mas está “santo”.
SER – c) Atinge a alma:
A transformação ontológica,
atingindo o “ser”, atinge, na verdade, a “alma” do ser humano. Um padre, por
exemplo, tendo falecido, continuará “sendo” um padre em espírito: sua alma
poderá responder no Céu: “sou um padre”.
Uma pessoa que tenha sido batizada
na Igreja Católica, torna-se cristã. E continuará nessa situação ontológica
mesmo depois da morte. Sua alma, se estiver no Céu, será a alma de um cristão
batizado. Uma pessoa que tenha falecido e nunca tenha sido batizada na Igreja
de Cristo, não tendo se tornado um cristão, poderá, depois da morte, estar no
Céu, mas sua alma não será a alma de um cristão. Ela poderá responder: eu sou
uma alma “pagã”, isto é, que nunca foi batizada.
O ser humano é inclinado ao pecado
pela sua natural fragilidade psico-espiritual. Esta inclinação é uma marca do
ser humano, portanto, atinge sua alma. “Somos” todos, não apenas estamos,
inclinados ao pecado, à falta, ao erro...
Estar – c) Atinge o corpo-mente:
A mudança de estado (ou existencial)
atinge o corpo-mente. Uma pessoa que esteja como advogado e passe a ser
professor (não mais advogando, mas ensinando) terá sofrido uma mudança
existencial, que atinge apenas o seu corpo e a sua mente. O seu lado espiritual
não é afetado. Ele não é um professor, mas “está” um professor, isto é: está
atuando como um professor. Seu corpo e sua mente se adaptam à nova situação.
Pelo possível uniforme de professor (corpo) e pela mudança mental a que se
submeteu, para dominar os conteúdos necessários ao processo de
ensino-aprendizagem, vê-se que, de fato, a mudança existencial atinge o
corpo-mente da pessoa.
A AVE MARIA: SOU OU ESTOU PECADOR?
Aplicando a reflexão acima, pode-se
fazer esta oportuna pergunta: sou ou estou pecador? Não é difícil de responder,
com base em tudo o que foi dito e ponderado. Embora a oração da Ave Maria reze
ao final: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”,
pode-se e se deve entender aqui a seguinte interpretação.
Não “somos” pecadores, na verdade!
Mas, sim, “estamos” pecadores. E é simples entender tal diferença, bastando
reportar-nos à eficácia do Sacramento da Reconciliação. Neste, o fiel cristão
católico é absolvido de seus pecados. Nesse momento, portanto, ele não “está”
mais pecador, mas passou por uma mudança existencial de pecador a santo. Ele
agora “está” em estado de graça, isto é, de santidade e pode, com todo o
direito, aproximar-se da Comunhão Eucarística, como se nos é orientado para uma
boa participação na Missa.
Podemos concluir, portanto, que
ninguém “é” pecador. Mas todos “estamos” pecadores, após termos cometido algum
pecado; ou “estamos” santos (ou em estado de graça) após termos passado pela
Confissão e termos recebido a absolvição dos pecados. Somos, então, todos
“inclinados” ao pecado. Mas não somos pecadores! Estamos, em certos momentos,
em pecado! Mas, também, podemos estar, em outros momentos, em estado de
santidade! E é muito bom saber disso.
A “Ave Maria” não está errada na sua
parte final. Apenas foi escrita sem a precisão adequada, tendo sido
simplificada pela não distinção dos verbos Ser e Estar. Os quais, de fato, não
existem de forma autônoma e separada em muitas línguas. Em inglês, por exemplo,
o único verbo é o Verbo “to be”, que é traduzido por “ser” ou “estar”,
dependendo da interpretação.
Na verdade, portanto, o cristão que
reza a Ave Maria está rezando: “Rogai por nós, que somos inclinados ao pecado,
agora e na hora de nossa morte. Amém”.
SER OU ESTAR – CONCLUSÃO
Interpretar adequadamente um texto,
em termos dos verbos Ser ou Estar – inclusive em tradução – pode nos levar à
correta e mais indicada expressão linguística. E, ao contrário, uma
interpretação inadequada pode nos levar a interpretações errôneas e tendenciosas.
Como é o caso da Ave Maria, que nos torna todos “pecadores” – numa
interpretação inadequada – ou nos lembra, mais adequadamente, que todos somos
inclinados (ontologicamente) ao pecado, mas que podemos dele nos libertar em
busca do estado de santidade.
Uilso Aragono. (Set. 2020)