quarta-feira, 30 de setembro de 2020

SER OU ESTAR: EIS A QUESTÃO

 Quando nos perguntam “quem é você?”, deveríamos entender uma pergunta dupla: “O que é você?” e “Como está você?”. Sim, pois esta é a verdadeira questão: ser ou estar; sou ou estou? Este texto pretende refletir sobre esta questão central em nossa vida: O que sou? Como estou? E levará em conta a doutrina cristã, particularmente a doutrina católica: a crença em Deus e em seu Filho Jesus Cristo, além da ação real do Espírito Santo. E, ao final, será feita uma reflexão sobre a oração católica Ave Maria.

ESQUEMA INICIAL

O esquema abaixo define e compara a questão em foco: sou ou estou?

SER – a) Situação permanente:

O que é você? Para uma resposta adequada, deve-se atender a este requisito: estar associada a uma situação permanente. Portanto, uma resposta múltipla poderia ser: sou um ser humano, sou um filho de Deus, sou um ser corpo-mente-espírito (ou corpo-psiquismo-alma).

 

ESTAR – a) Situação transitória:

Como está você? Para uma resposta adequada, deve-se atender a este requisito: estar associada a uma situação transitória. Portanto, uma resposta múltipla poderia ser: estou como um professor (ou qualquer outra profissão ou ocupação), estou saudável, estou estressado, estou em estado de pecado.

 

SER – b) Transformação ontológica:

Acontece quando uma pessoa muda o caráter do seu “ser”. Por exemplo, quando uma pessoa, criatura de Deus, inicialmente, é batizada e torna-se – por efeito de uma verdadeira transformação ontológica! – em um filho de Deus. Esta pessoa pode responder à pergunta “O que é você?” por meio da resposta válida: eu sou um filho de Deus!

Do mesmo modo, quando uma pessoa batizada recebe validamente o sacramento do matrimônio cristão católico, passa a um novo “ser”: agora é marido da sua esposa; uma marca indelével, que o torna marido dela (e ela, esposa dele) por toda a sua vida terrena.  Agora ele pode responder à pergunta “O que é você?” com a resposta: sou marido de fulana. Ele não é mais somente “um filho de Deus”, mas um esposo.

Outro exemplo ocorre se um cristão batizado, pela recepção válida do sacramento da Ordem, torna-se – por efeito de uma verdadeira transformação ontológica! – um sacerdote (padre ou presbítero). Ele poderá, igualmente, responder à pergunta “O que é você?” pela resposta: eu sou um padre; porque o serei por toda a vida terrena, mesmo que venha a não mais exercer o sacerdócio, por alguma impossibilidade física ou legal, ainda serei um sacerdote, pela marca indelével recebida no sacramento da Ordem.

Teoricamente, se um ser humano perder o seu corpo, pela morte, este sofre uma transformação ontológica: agora este ser humano é somente uma alma ou um ser humano puramente espiritual. Ele poderia responder àquela pergunta “O que é você?” pela resposta: eu sou uma alma (ou um ser humano espiritual) – que poderá estar no Céu, no Purgatório ou no inferno...

 

ESTAR – b) Mudança existencial:

Acontece quando uma pessoa muda seu estado atual. Por exemplo, deixou de “estar” professor e passou a atuar como advogado. Agora sua resposta à pergunta “Como você está?” será: estou advogado. Isto é, essa pessoa mudou seu estado existencial (sua profissão).

Um doente que se recupera, passa por uma mudança existencial. Ele pode, agora, responder à pergunta “Como está você?” dizendo que está saudável. Isto se aplica para qualquer estado existencial ou circunstancial de uma pessoa.

Um interessante exemplo na vida cristã é a situação de pecado. Se um cristão está em “estado de pecado” e procura o confessionário, para uma confissão válida, ao receber a absolvição ele passa a estar em “estado de graça”. À pergunta “Como você está?”, ele poderá responder, após ter passado por essa mudança existencial, que está em “estado de graça”, ou que não está pecador, mas está “santo”.

 

SER – c) Atinge a alma:

A transformação ontológica, atingindo o “ser”, atinge, na verdade, a “alma” do ser humano. Um padre, por exemplo, tendo falecido, continuará “sendo” um padre em espírito: sua alma poderá responder no Céu: “sou um padre”.

Uma pessoa que tenha sido batizada na Igreja Católica, torna-se cristã. E continuará nessa situação ontológica mesmo depois da morte. Sua alma, se estiver no Céu, será a alma de um cristão batizado. Uma pessoa que tenha falecido e nunca tenha sido batizada na Igreja de Cristo, não tendo se tornado um cristão, poderá, depois da morte, estar no Céu, mas sua alma não será a alma de um cristão. Ela poderá responder: eu sou uma alma “pagã”, isto é, que nunca foi batizada.

O ser humano é inclinado ao pecado pela sua natural fragilidade psico-espiritual. Esta inclinação é uma marca do ser humano, portanto, atinge sua alma. “Somos” todos, não apenas estamos, inclinados ao pecado, à falta, ao erro...


Estar – c) Atinge o corpo-mente:

A mudança de estado (ou existencial) atinge o corpo-mente. Uma pessoa que esteja como advogado e passe a ser professor (não mais advogando, mas ensinando) terá sofrido uma mudança existencial, que atinge apenas o seu corpo e a sua mente. O seu lado espiritual não é afetado. Ele não é um professor, mas “está” um professor, isto é: está atuando como um professor. Seu corpo e sua mente se adaptam à nova situação. Pelo possível uniforme de professor (corpo) e pela mudança mental a que se submeteu, para dominar os conteúdos necessários ao processo de ensino-aprendizagem, vê-se que, de fato, a mudança existencial atinge o corpo-mente da pessoa.

 

A AVE MARIA: SOU OU ESTOU PECADOR?

Aplicando a reflexão acima, pode-se fazer esta oportuna pergunta: sou ou estou pecador? Não é difícil de responder, com base em tudo o que foi dito e ponderado. Embora a oração da Ave Maria reze ao final: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”, pode-se e se deve entender aqui a seguinte interpretação.

Não “somos” pecadores, na verdade! Mas, sim, “estamos” pecadores. E é simples entender tal diferença, bastando reportar-nos à eficácia do Sacramento da Reconciliação. Neste, o fiel cristão católico é absolvido de seus pecados. Nesse momento, portanto, ele não “está” mais pecador, mas passou por uma mudança existencial de pecador a santo. Ele agora “está” em estado de graça, isto é, de santidade e pode, com todo o direito, aproximar-se da Comunhão Eucarística, como se nos é orientado para uma boa participação na Missa.

Podemos concluir, portanto, que ninguém “é” pecador. Mas todos “estamos” pecadores, após termos cometido algum pecado; ou “estamos” santos (ou em estado de graça) após termos passado pela Confissão e termos recebido a absolvição dos pecados. Somos, então, todos “inclinados” ao pecado. Mas não somos pecadores! Estamos, em certos momentos, em pecado! Mas, também, podemos estar, em outros momentos, em estado de santidade! E é muito bom saber disso.

A “Ave Maria” não está errada na sua parte final. Apenas foi escrita sem a precisão adequada, tendo sido simplificada pela não distinção dos verbos Ser e Estar. Os quais, de fato, não existem de forma autônoma e separada em muitas línguas. Em inglês, por exemplo, o único verbo é o Verbo “to be”, que é traduzido por “ser” ou “estar”, dependendo da interpretação.

Na verdade, portanto, o cristão que reza a Ave Maria está rezando: “Rogai por nós, que somos inclinados ao pecado, agora e na hora de nossa morte. Amém”.


SER OU ESTAR – CONCLUSÃO

Interpretar adequadamente um texto, em termos dos verbos Ser ou Estar – inclusive em tradução – pode nos levar à correta e mais indicada expressão linguística. E, ao contrário, uma interpretação inadequada pode nos levar a interpretações errôneas e tendenciosas. Como é o caso da Ave Maria, que nos torna todos “pecadores” – numa interpretação inadequada – ou nos lembra, mais adequadamente, que todos somos inclinados (ontologicamente) ao pecado, mas que podemos dele nos libertar em busca do estado de santidade.

Uilso Aragono.  (Set. 2020)

Um comentário:

Lina Aragão disse...

Muito esclarecedora sua reflexão sobre ser e estar! Agradeço pelo ensinamento!

Quem sou eu

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Sou formado em Engenharia Elétrica, com mestrado e doutorado na Univ. Federal de Santa Catarina e Prof. Titular, aposentado, na Univ. Fed. do Espírito Santo (UFES). Tenho formação, também, em Filosofia, Teologia, Educação, Língua Internacional (Esperanto), Oratória e comunicação. Meu currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4787185A8

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