Assistir a mortes e mais mortes
no trânsito e ter de aceitar que sejam caracterizadas por nossas autoridades
como, simplesmente, “acidentes” de trânsito, são coisas que revoltam a todos,
especialmente aos parentes das vítimas. Mas será que tais acidentes de
trânsito, que mutilam ou matam tantos cidadãos em nossas sociedades, ditas “civilizadas”,
são, realmente, acidentes?... Ou poderiam ser, com muita propriedade,
caracterizados como crimes? Esta questão da criminalização de graves acidentes
de trânsito, com vítimas fatais, é nossa reflexão de hoje.
Acredito que a distinção que o Direito
faz entre crime culposo (aquele em que o agente deu causa ao
resultado por imprudência, negligência ou imperícia) e crime doloso (aquele em que o agente quis o resultado ou assumiu o risco de
produzi-lo) seja a raiz de tanta impunidade. Pois qualquer pessoa
mentalmente sã haverá de reconhecer que um motorista dirigindo, em via pública,
um veículo – que pode pesar cerca de 800 quilos – de forma imprudente,
negligente ou com imperícia estará, necessariamente, “assumindo” o risco de um
acidente sério, e com consequências fatais ou mutiladoras. Esta distinção
infeliz tem levado nossos delegados e juízes, costumeira e repetidamente, a
associarem tais acidentes a “crimes culposos”, isto é, na prática, simples “acidentes”
de trânsito. Enquanto esta realidade
legal não for alterada, a impunidade estará garantida, e, por consequência, toda
a série de frustração, indignação, sofrimento e perdas de vidas tão preciosas.
Mas, talvez, haja uma luz no fim
do túnel dessa história tão triste que são os milhares de mortes no trânsito a
cada dia. A luz, além da superação da infeliz distinção apontada acima, pode
ser o simples reconhecimento de que o respeito às leis no trânsito seja o
fundamento para que um acidente não seja considerado um crime. Havendo, por
outro lado, qualquer desrespeito às leis em um grave acidente no trânsito, tal evento
será considerado, sem qualquer dúvida, um crime doloso, isto é, o motorista
terá assumido o risco de matar ou mutilar a vítima.
O raciocínio por trás da proposta
acima é o seguinte: as leis existem para disciplinar o trânsito e seus agentes
(motoristas, pedestres, ciclistas, motociclistas, etc.), e para evitar que
acidentes graves aconteçam. Em resumo, a proposta pode ser muito simplesmente
enunciada: acidente grave tendo ocorrido junto com desrespeito às leis do trânsito
é crime doloso; se ocorreu dentro de um quadro de respeito às leis, é,
simplesmente, um acidente ou uma fatalidade. Afinal, crime (delito, ou
transgressão) é qualquer violação grave de lei moral, civil ou religiosa. Para
haver crime tem de haver violação ou desrespeito à legislação.
Alguns exemplos podem esclarecer.
Se um motorista, trafegando em velocidade de 40 km/h, numa via pública cuja
velocidade máxima seja, exatamente, 40 km/h, é surpreendido por um cidadão que
atravessa a rua, distraído, e o atropela, isto será considerado um acidente. E
mesmo que a vítima venha a óbito, não terá havido crime, pois não houve
qualquer infração à legislação. Já se esse mesmo motorista, nessa mesma via
pública, estiver desenvolvendo 60 km/h e atropela um pedestre distraído que
invade a rua, isto poderá ser caracterizado como crime – e doloso! –, pois terá
havido desrespeito à legislação de trânsito, à velocidade máxima!
Se uma abordagem como essa fosse
aplicada aos milhares de acidentes com vítimas fatais, a impunidade, certamente,
estaria em queda livre, pois todos esses “acidentes” seriam identificados como
verdadeiros “crimes dolosos”, em que os motoristas, pelo fato de terem
desrespeitado a legislação de trânsito, teriam, de fato, assumido o risco de
causar tais infortúnios. Os desrespeitos às leis de trânsito mais comuns, e
associados a tantos e tantos acidentes fatais, podem ser listados: bebida
alcoólica, excesso de velocidade, ultrapassagem em local proibido e falta de
habilitação. Se houve vítima fatal ou acidente grave, em eventos ligados a tais
violações legais, não poderia haver dúvida quanto à responsabilidade criminal e
dolosa de tais motoristas.
Não tenho certeza absoluta de
estar certo em relação a esta minha reflexão, em que associo o desrespeito à
legislação de trânsito a crimes dolosos. Mas se delegados e juízes não
encontrarem razões fortes para desqualificarem o raciocínio exposto, teremos,
todos, encontrado uma fórmula para que a tragédia de acidentes de trânsito,
fatais e mutiladores, possa chegar ao seu fim. E a impunidade, também. Assim
espero.
Uilso Aragono (agosto/2013)
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